domingo, 10 de outubro de 2010

Baden-Powell e o projecto educativo do Escutismo



Naquela que é considerada a melhor, a mais completa e polémica obra sobre Baden-Powell (Baden-Powell, Founder of Boy Scouts. New Haven and London: Yale University Press, 2001), o seu autor, Tim Jeal, declara que ao escrevê-la procurou “fazer justiça a um complexo, fascinante e por vezes perturbado homem que fez a única e benéfica contribuição para a história do século vinte que ainda não recebeu o reconhecimento que merece”. Neste sentido, por exemplo, basta um pequeno esforço de pesquisa para constatarmos o reduzido estatuto académico e investigativo do Escutismo, assim como a ausência do pensamento educacional Baden-Powell (B.-P.) no quadro dos grandes educadores contemporâneos. E no entanto, a sua obra alcançou uma projecção admirável: estima-se que ao longo de um século (1907-2007) tenham passado pelas fileiras do movimento escutista mais de 500 milhões de crianças, jovens e adultos, contando actualmente com 28 milhões de membros espalhados por 216 países e territórios. Numa altura em que se supõe vivermos numa era de globalização, em que se contrabalançam quotidianamente os benefícios e os malefícios deste processo económico, político, cultural, constatar esta expressão global do movimento escutista remete-nos, inevitavelmente, para a realização do sonho do fundador, isto é, para o papel do escutismo na formação de “bons cidadãos” e no desenvolvimento da ideia de uma fraternidade mundial. Tal como vincou o Director-Geral da UNESCO, Frederico Mayor, em 1995, o movimento escutista “constitui uma das maiores redes multiculturais e multiconfessionais para a educação e para a acção dos jovens no desenvolvimento de uma cultura da paz, da tolerância e da solidariedade”. Num ano em que se comemora o centenário deste movimento e simultaneamente os cento e cinquenta anos do nascimento de B.-P., a atribuição do prémio Nobel da Paz ao escutismo em 2007 constituiria, certamente, a melhor forma de se reconhecer esta aventura educativa e cidadã em prol da humanidade.
Quando no verão de 1907 B.-P. organizou e dirigiu um acampamento experimental na Ilha de Brownsea (de 15 de Julho a 9 de Agosto), com a presença de 20 rapazes de várias proveniências sociais e onde pôs à prova as suas ideias educacionais, certamente estaria longe de imaginar que esta experiência viesse a constituir um marco fundacional de um movimento que nos tempos subsequentes se desenvolveu em grande escala. Não foi propriamente o impacto na opinião pública deste acampamento bem sucedido que despoletou o nascimento do escutismo, mas fundamentalmente a publicação, em Janeiro de 1908, de uma obra intitulada Scouting for Boys, inicialmente dada à estampa em seis fascículos quinzenais, mas prontamente republicada (em Maio do mesmo ano), sob a forma de livro, atendendo às suas extraordinárias vendas e aos efeitos multiplicadores que as propostas de B.-P. tinham gerado entre os jovens.
O sucesso editorial desta obra (que foi provavelmente, de acordo com Tim Jeal (2001: 396), o livro mais vendido no século XX a seguir à Bíblia) e que se traduziu na organização espontânea de grupos de jovens que prontamente se autodenominaram de Scouts, assentou, por assim dizer, numa mensagem fortemente enraizada no imaginário juvenil; e o facto de o escutismo se instituir como efeito não previsto desta publicação, não só vem revelar o carácter inovador das propostas de B.-P., ao proporcionar aos rapazes (e às raparigas posteriormente, a partir de 1909) uma oportunidade de se desenvolverem como cidadãos responsáveis na acção e pela acção, como igualmente vem sublinhar a possibilidade dos jovens também se poderem transformar em sujeitos da sua própria educação. A própria capa do primeiro fascículo do Scouting for Boys, apesar de não ser desenhada por B.-P., revelava por si só o significado (educativo) de um rapaz se tornar um Scout. Na interpretação de Tim Jeal (p. 390), “Ele [John Hassall] desenhou um rapaz escondido por detrás de um rochedo com a sua vara de escuteiro e o seu chapéu de aba larga (stetson hat) procurando observar um distante grupo de contrabandistas que desembarcava de um misterioso navio. A implicação era clara: ao tornar-se escuteiro o rapaz não só leria aventuras como também faria parte delas”.
O mote para o prefácio ao primeiro Scout Handbook do “Escutismo para Rapazes” (1908) foi a preocupação de B.-P em tentar compreender porque razão os mais entusiastas consideravam o escutismo uma “revolução na educação”. Embora inicialmente relutante na aceitação desta ideia, o que é certo é que volvidos alguns parágrafos, e perante a elucidação das especificidades do movimento, este autor tende a admiti-la. Mas o que nos interessa realçar nesse prefácio, para além dos objectivos da educação escutista ali bem explicitados, é que podemos vislumbrar nesse texto o prelúdio da actual educação não-formal, essencialmente no que respeita à representação de incompletude que se cristaliza na relação escola-sociedade. As suas propostas educativas, que apelavam à realização de actividades de ar livre como contexto de excelência do escutismo, não raras vezes se confrontaram com o modelo da educação escolar, tornando-se inevitável não só a crítica às lógicas de funcionamento desta instituição e ao tipo de cidadão que ela promovia, como igualmente se desenvolveram na procura de um espaço de afirmação no campo mais vasto da educação. Assim, ao sublinhar a importância das actividades recreativas do escutismo como “apoio prático à educação”, B.-P., no referido prefácio, sugeria que “ele poderia ser visto como complemento à formação escolar, e preencher certas lacunas inevitáveis no currículo escolar. É, em breves palavras, uma escola de cidadania através da experiência ao ar livre”.
Apresentando-se como complementar à escola, o escutismo instituiu, por assim dizer, uma das concepções que na actualidade tendem a caracterizar a educação não-formal/não-escolar. Contudo, B.-P. fez questão de marcar as diferenças educativas entre o escutismo e a escola, situando os objectivos do movimento num plano mais prático e experiencial: “procuramos ensinar os rapazes a viver, não apenas como construir a vida”. A sua grande preocupação era deslocar o enfoque educativo de uma esfera mais individualista, competitiva, materialista, entre outros valores mais próximos do ethos da escola, para uma esfera mais social e colectiva, pautada pelo serviço aos outros.
Empenhado no desenvolvimento do “civismo activo”, B.-P. preconizava uma educação escutista assente em quatro dimensões: o carácter, a saúde e a força, a habilidade manual, o serviço ao próximo. E a pedra de toque da metodologia escutista, na qual e pela qual se dava expressão àquelas dimensões, foi a que consagrou o sistema de patrulhas, isto é, um sistema que mostra “a cada rapaz a sua responsabilidade pessoal no bem da patrulha e leva cada patrulha a reconhecer que tem responsabilidade bem definida no progresso de todo o Grupo. Por meio do sistema de patrulhas, os escuteiros vêm a reconhecer que têm voz activa em tudo quanto o seu Grupo faz” (B.-P., Escutismo Para Rapazes, 1977, p.32). Sabendo que os rapazes (os jovens em geral) tendem naturalmente a agrupar-se, B.-P. vislumbrou nestes “grupos fraternais” e na sua forma de organização e de liderança uma possibilidade inesgotável de educação e de aprendizagem. Aos jovens faltava dar-lhes “um uniforme vistoso e equipamento”, falar-lhes “à imaginação e ao sentido romântico” e lançá-los “na vida activa do ar livre” (B.-P., Auxiliar do Chefe Escuta, 1976, p.36). No fundo, a atribuição de responsabilidades no seio da patrulha, o espírito de colaboração e de cooperação que emergia nos jogos, nas actividades e nos vários cenários de interacção escutista, orientados para a consecução de objectivos comuns e partilhados, prefiguravam-se, por conseguinte, como valiosos contributos para a realização da aprendizagem dos sentidos da Democracia e da experiência da cidadania democrática.
E isto invoca uma outra especificidade educativa bem patente no seguinte princípio motriz do escutismo: “estudam[-se] as ideias do rapaz, que é instigado a EDUCAR-SE A SI PRÓPRIO em vez de ser instruído” (Ibid., p.36; Maiúsculas e itálico no original). Para além de se enfatizar neste excerto a perspectiva da auto-educação, não menos importante se torna neste processo encontrar um perfil de chefe-escuta (dirigente) consentâneo com o cariz do movimento. Para o fundador do escutismo este scoutmastership teria “de ser apenas um homem-rapaz” (Ibid., 15), o que invalida desde logo quaisquer conotações com o modelo do professor, ou com as estratégias de ensino por este tradicionalmente seguidas. Aliás, encontrámos com frequência nos trabalhos deste autor uma crítica cerrada às lógicas do ensino, ao funcionamento da própria escola, ao antagonismo dos papéis e dos interesses dos professores e dos alunos, sendo também recorrente a distinção entre instrução e educação: a primeira, define-a como “o método de inculcar e martelar conhecimentos no rapaz”; a segunda, como “o método de ‘puxar’ por cada rapaz individualmente e dar-lhe a ambição e a disposição de aprender por si mesmo” (aspas no original). Donde, para o escutismo, B.-P. preferiu inequivocamente esta última opção.
É certo que a apologia que este antigo general faz da auto-educação revela sobretudo a sua preocupação com a incapacidade da escola na educação cívica dos rapazes, já que esta instituição estaria mais voltada para a tarefa de ensinar a aprender. A conclusão da educação do rapaz, para assumir os papéis do (homem) adulto, passaria pela sua predisposição para se educar a si mesmo, tendo em vista a sua preparação para assumir as responsabilidades da futura profissão, “de futuro pai de filhos [e] de cidadão e guia de outros homens” (B.-P., 1974: p. 27). À escola caberia, no entanto, o primeiro impulso neste processo: “o êxito ou o fracasso dependem, em grande parte, do teu próprio esforço. Aqueles que aproveitam os conhecimentos escolares para completarem a sua educação são os que triunfam. E é neste ponto que os livros e as conferências te podem valer de muito” (Ibid., p.167).
Pensamos que fica bem clara a actualidade do pensamento educativo de Baden-Powell. Ao movimento escutista compete, tão-somente, preservar e desenvolver a matriz educacional preconizada pelo fundador, o que nem sempre tem sido conseguido. Muitas das propostas e actividades supostamente inovadoras e que nos são apresentadas por diversas organizações educativas, ambientais, de lazer e aventura, e mesmo empresariais, revelam muito daquilo a que nos habituamos a ver há muito tempo no escutismo. E quando se descobre que em muitas ideias e projectos o escutismo esteve na vanguarda de uma educação cidadã, verificamos que, por vezes, se caiu na tentação de mimetizar aquilo que outrora já lhe foi familiar e, nalguns casos, pertenceu. Numa altura em que sobe de tom a crítica à instituição escolar e em que a ideologia da aprendizagem ao longo da vida tende a sedimentar a individualização dos percursos educativos, seria bom não deixar Baden-Powell esquecido entre os que defenderam a cidadania como um bem colectivo. Cabe ao escutismo actualizar este desafio

Sem comentários:

Enviar um comentário